As Melhores do "Vai..."

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O comunismo ético de Oscar Niemeyer - Por Leonardo Boff


Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital

Não tive muitos encontros com Oscar Niemeyer. Mas os que tive foram longos e densos. Que falaria um arquiteto com um teólogo senão sobre Deus, sobre religião, sobre a injustiça dos pobres e sobre o sentido da vida?
Nas nossas conversas, sentia alguém com uma profunda saudade de Deus. Invejava-me que, me tendo por inteligente (na opinião dele) ainda assim acreditava em Deus, coisa que ele não conseguia. Mas eu o tranquilizava ao dizer: o importante não é crer ou não crer em Deus. Mas viver com ética, amor, solidariedade e compaixão pelos que mais sofrem. Pois, na tarde da vida, o que conta mesmo são tais coisas. E nesse ponto ele estava muito bem colocado. Seu olhar se perdia ao longe, com leve brilho.
Impressionou-se sobremaneira, certa feita, quando lhe disse a frase de um teólogo medieval: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. E ele retrucou: "mas que significa isso?” Eu respondi: "Deus não é um objeto que pode ser encontrado por ai; se assim fosse, ele seria uma parte do mundo e não Deus”. Mas então, perguntou ele: "que raio é esse Deus?” E eu, quase sussurrando, disse-lhe: "É uma espécie de Energia poderosa e amorosa que cria as condições para que as coisas possam existir; é mais ou menos como o olho: ele vê tudo mas não pode ver a si mesmo; ou como o pensamento: a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. E ele ficou pensativo. Mas continuou: "a teologia cristã diz isso?” Eu respondi: "diz mas tem vergonha de dizê-lo, porque então deveria antes calar que falar; e vive falando, especialmente os Papas”. Mas consolei-o com uma frase atribuída a Jorge Luis Borges, o grande argentino:”A teologia é uma ciência curiosa: nela tudo é verdadeiro, porque tudo é inventado”. Achou muita graça. Mais graça achou com uma bela trouvaille de um gari do Rio, o famoso "Gari Sorriso: "Deus é o vento e a lua; é a dinâmica do crescer; é aplaudir quem sobe e aparar quem desce”. Desconfio que Oscar não teria dificuldade de aceitar esse Deus tão humano e tão próximo a nós.
Mas sorriu com suavidade. E eu aproveitei para dizer: "Não é a mesma coisa com sua arquitetura? Nela tudo é bonito e simples, não porque é racional mas porque tudo é inventado e fruto da imaginação”. Nisso ele concordou adiantando que na arquitetura se inspira mais lendo poesia, romance e ficção do que se entregando a elucubrações intelectuais. E eu ponderei: "na religião é mais ou menos a mesma coisa: a grandeza da religião é a fantasia, a capacidade utópica de projetar reinos de justiça e céus de felicidade. E grande pensadores modernos da religião como Bloch, Goldman, Durkheim, Rubem Alves e outros não dizem outra coisa: o nosso equívoco foi colocar a religião na razão quando o seu nicho natural se encontra no imaginário e no princípio esperança. Ai ela mostra a sua verdade. E nos pode inspirar um sentido de vida.”
Para mim a grandeza de Oscar Niemeyer não reside apenas na sua genialidade, reconhecida e louvada no mundo inteiro. Mas na sua concepção da vida e da profundidade de seu comunismo. Para ele "a vida é um sopro”, leve e passageiro. Mas um sopro vivido com plena inteireza. Antes de mais nada, a vida para ele não era puro desfrute, mas criatividade e trabalho. Trabalhou até o fim, como Picazzo, produzindo mais de 600 obras. Mas como era inteiro, cultivava as artes, a literatura e as ciências. Ultimamente se pôs a estudar cosmologia e física quântica. Enchia-se de admiração e de espanto diante da grandeur do universo.
Mas mais que tudo cultivou a amizade, a solidariedade e a benquerença para com todos. "O importante não é a arquitetura” repetia muitas vezes, "o importante é a vida”. Mas não qualquer vida; a vida vivida na busca da transformação necessária que supere as injustiças contra os pobres, que melhore esse mundo perverso, vida que se traduza em solidariedade e amizade. No JB de 21/04/2007 confessou: ”O fundamental é reconhecer que a vida é injusta e só de mãos dadas, como irmãos e irmãs, podemos vive-la melhor”.
Seu comunismo está muito próximo daquele dos primeiros cristãos, referido nos Atos dos Apóstolos nos capítulos 2 e 4. Ai se diz que "os cristãos colocavam tudo em comum e que não havia pobres entre eles”. Portanto, não era um comunismo ideológico, mas ético e humanitário: compartilhar, viver com sobriedade, como sempre viveu, despojar-se do dinheiro e ajudar a quem precisasse. Tudo deveria ser comum. Perguntado por um jornalista se aceitaria a pílula da eterna juventude, respondeu coerentemente: "aceitaria se fosse para todo mundo; não quero a imortalidade só para mim”.
Um fato ficou-me inesquecível. Ocorreu nos inícios dos anos 80 do século passado. Estando Oscar em Petrópolis, me convidou para almoçar com ele. Eu havia chegado naquele dia de Cuba, onde, com Frei Betto, durante anos dialogávamos com os vários escalões do governo (sempre vigiados pelo SNI), a pedido de Fidel Castro, para ver se os tirávamos da concepção dogmática e rígida do marxismo soviético. Eram tempos tranquilos em Cuba que, com o apoio da União Soviética, podia levar avante seus esplêndidos projetos de saúde, de educação e de cultura. Contei que, por todos os lados que tinha ido em Cuba, nunca encontrei favelas mas uma pobreza digna e operosa. Contei mil coisas de Cuba que, segundo frei Betto, na época era "uma Bahia que deu certo”. Seus olhos brilhavam. Quase não comia. Enchia-se de entusiasmo ao ver que, em algum lugar do mundo, seu sonho de comunismo poderia, pelo menos em parte, ganhar corpo e ser bom para as maiorias.
Qual não foi o meu espanto quando, dois dias após, apareceu na Folha de São Paulo, um artigo dele com um belo desenho de três montanhas, com uma cruz em cima. Em certa altura dizia: "Descendo a serra de Petrópolis ao Rio, eu que sou ateu, rezava para o Deus de Frei Boff para que aquela situação do povo cubano pudesse um dia se realizar no Brasil”. Essa era a generosidade cálida, suave e radicalmente humana de Oscar Niemeyer.
Guardo uma memória perene dele. Adquiri de Darcy Ribeiro, de quem Oscar era amigo-irmão, uma pequeno apartamento no bairro do Alto da Boa-Vista, no Vale Encantando. De lá se avista toda a Barra da Tijuca até o fim do Recreio dos Bandeirantes. Oscar reformou aquele apartamento para o seu amigo, de tal forma que de qualquer lugar que estivesse, Darcy (que era pequeno de estatura), pudesse ver sempre o mar. Fez um estrado de uns 50 centímetros de altura E como não podia deixar de ser, com uma bela curva de canto, qual onda do mar ou corpo da mulher amada. Aí me recolho quando quero escrever e meditar um pouco, pois um teólogo deve cuidar também de salvar a sua alma.
Por duas vezes se ofereceu para fazer uma maquete de igrejinha para o sítio onde moro em Araras em Petrópolis. Relutei, pois considerava injusto valorizar minha propriedade com uma peça de um gênio como Oscar. Finalmente, Deus não está nem no céu nem na terra, está lá onde as portas da casa estão abertas.
A vida não está destinada a desaparecer na morte, mas a se transfigurar alquimicamente através da morte. Oscar Niemeyer apenas passou para o outro lado da vida, para o lado invisível. Mas o invisível faz parte do visível. Por isso ele não está ausente, mas está presente, apenas invisível. Mas sempre com a mesma doçura, suavidade, amizade, solidariedade e amorosidade que permanentemente o caracterizou. E de lá onde estiver, estará fantasiando, projetando e criando mundos belos, curvos e cheios de leveza.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Marcos Coimbra: Na política, “vamos precisar de estômago forte” em 2013


2013 vai ser difícil

Por Marcos Coimbra

Um espectro ronda a política brasileira. O fantasma da próxima eleição presidencial.

Este ano já foi marcado por ele.

Ou alguém acredita que é genuína a inspiração ética por trás da recente onda moralista, que são sinceras as manchetes a saudar “o julgamento do século”? Que essas coisas são mais que capítulos da luta política cujo desfecho ocorrerá em outubro de 2014?

A história dos últimos 10 anos foi marcada por três apostas equivocadas que as elites brasileiras, seus intelectuais e porta-vozes fizeram. A primeira aconteceu em 2002, quando imaginaram que Lula não venceria e que, se vencesse, seria incapaz de fazer um bom governo.

Estavam convencidos de que o povo se recusaria a votar em alguém como ele, tão parecido com as pessoas comuns. Que terminaria a eleição com os 30% de petistas existentes. E que, por isso, o adversário de Lula naquela eleição, quem quer que fosse, ganharia.

O cálculo deu errado, mas não porque ele acabou por contrariar o prognóstico. No fundo, todos sabiam que a rejeição de Fernando Henrique Cardoso não era impossível que José Serra perdesse.

A verdadeira aposta era outra: Lula seria um fracasso como presidente. Sua vitória seria um remédio amargo que o Brasil precisaria tomar. Para nunca mais querer repeti-lo.

Quando veio o “mensalão”, raciocinaram que bastaria aproveitar o episódio. Estava para se cumprir a profecia de que o PT não ultrapassaria 2006. Só que Lula venceu outra vez e a segunda aposta também deu errado. E ele fez um novo governo melhor que o primeiro, aos olhos da quase totalidade da opinião pública. Em todos os quesitos relevantes, as pessoas o compararam positivamente aos de seus antecessores, em especial aos oito anos tucanos.

A terceira aposta foi a de que o PT perderia a eleição de 2010, pois não tinha um nome para derrotar o PSDB. Que ali terminaria a exageradamente longa hegemonia petista na política nacional. De fato não tinha, mas havia Lula e seu tirocínio. Ele percebeu que, Com Dilma Rousseff, poderia vencer.

O PT ultrapssaou as barreiras de 2002, 2006 e 2010.

Estamos em marcha batida para 2014 e as oposições, especialmente seu núcleo duro empresarial e midiático, se convenceram de que não podem se dar ao luxo de uma quarta aposta errada. Que o PT não vai perder, por incompetência ou falta de nomes, a próxima eleição. Terão de derrotá-lo.

Mas elas se tornaram cada vez mais descretes da eficácia de uma estratégia apenas positiva. Desconfiam que não têm uma candidatura capaz de entusiasmar o eleitorado e não sabem o que dizer ao País. Perderam tempo com Serra, Geraldo Alckmin mostrou-se excessivamente regional e Aécio Neves é quase desconhecido pela parte do eleitorado que conta, pois decide a eleição.

Como mostram as pesquisas, tampouco conseguiram persuadir o País de que “as coisas vão mal”. Por mais que o noticiário da grande mídia e seus “formadores de opinião”insistam em pintar quadros catastróficos, falando sem parar em crises e problemas, a maioria acha que estamos bem. Sensação que é o fundamento da ideia de continuidade.

As oposições perceberam que não leva a nada repetir chavões como “o País até que avançou, mas poderia estar melhor”, “Tudo de positivo que houve nas administrações petistas foi herança de FHC”, “Lula só deu certo porque é sortudo” e “Dilma é limitada e má administradora”. A população não acredita nessa conversa. Faltam nomes e argumentos às oposições. Estão sem diagnóstico e sem propostas para o Brasil, melhores e mais convincentes que aquelas do PT.

Nem por isso vão criuzar os braços e aguardar passivamente uma nova derrota. Se não dá certo por bem, que seja por mal. Se não vai na boa, que seja no tranco.

Fazer política negativa é legítimo, ainda que desagradável. Denúncias, boatos, hipocrisias, encenações, tudo isso é arma usada mundo afora na briga política.

A retórica anticorrupção é o bastião que resta ao antilulopetismo. Mas precisa ser turbinada e amplificada. Fundamentalmente, porque a maioria das pessoas considera os políticos oposicionistas tão corruptos – ou mais – que os petistas.

O que fazer? Aumentar o tom, falar alto, criar a imagem de que vivemos a época dos piores escandalos de todos os tempos. Produzir uma denúncia, uma intriga, uma acusação atrás da outra.

Pelo andar da carruagem, é o que veremos na mídia e no discurso oposicionista ao longo de 2013. Já começou.

Vamos precisar de estômago forte.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Relato da viagem às comunidades Guarani-Kaiowá



*Por Pedro Andrade

            O caminho da Rodovia MS-295 revela uma triste paisagem: os imensos campos de soja, que se estendem por todos os lados até onde os olhos podem ver no horizonte. Por cada quilômetro que passamos nos deparamos com uma paisagem inexoravelmente idêntica à anterior. Em uma das porteiras posso ler as palavras “Fazenda Feliz Progresso”. Não posso deixar de pensar no que consiste esse progresso e no que a ideia de progresso esconde. Victor Hugo afirma que o progresso é uma engrenagem que, quando começa a funcionar, sempre esmaga um ser humano. Em “Ondas e Sombras”, um dos mais belos capítulos de Os Miseráveis,  o progresso é retratado como a impiedosa marcha da sociedade humana, que não dá atenção às almas que se vão perdendo. Nessa viagem eu também pude conhecer essa outra face do progresso.
            Chegamos ao Mato Grosso do Sul com uma autorização para participar da visita local do Ministério Público Federal às comunidades Guarani-Kaiowá, em nome de nossa organização, a Advogados Sem Fronteiras. Tivemos a honra de ter como nosso guia uma liderança Guarani ameaçada de morte que já conhecíamos no papel, mas não pessoalmente. Por coincidência, estávamos começando a trabalhar em uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que pedia a proteção, por parte do Estado Brasileiro, justamente dessa liderança local.
            A Rodovia MS-295 nos levava para a comunidade de Pyelito Kue/Mbarakay, que havia sido responsável pela carta de “morte coletiva”, na qual declaravam que somente sairiam mortos de sua tekoha – suas terras tradicionais e que tanta projeção deu recentente à causa Guarani-Kaiowá. Felizmente, a comunidade já não enfrentava mais o risco de uma reintegração de posse (um “despejo”), devido ao sucesso do recurso interposto pelo Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul (MPF/MS) e pela Advocacia-Geral da União (AGU), na figura do Procurador Federal Frederico Aluisio C. Soares[1]. Entretanto, a comunidade ainda estava submetida a uma grave realidade.
            Em um vídeo produzido pela ASCURI em 24 de outubro de 2012, uma liderança local relatava a dificuldade de acesso a alimentos, a ausência de entregas de cestas básicas pela FUNAI e a falta de visitas por parte da FUNASA – a despeito da presença de um grande número de crianças no acampamento. Um ataque de grupos privados de segurança havia sido perpetrado em 23 de agosto de 2011, que chegou a ser classificado de “genocídio” pelo MPF/MS, no qual diversas mulheres, crianças e idosos ficaram feridos. Após esse ataque, a comunidade foi obrigada a se refugiar em um território de somente 2 hectares, que impossibilitava as mínimas condições de subsistência. A única possibilidade de entrar e sair do acampamento atualmente é através do largo rio Jogui (Hovy). Para atravessar, a população local precisa passar pelo rio, tendo somente como apoio um fio de arame que foi amarrado de um lado ao outro da margem. É mediante essa travessia que passam crianças, idosos, mulheres carregando seus filhos, ou homens carregando as cestas básicas recebidas por meio de um cordão amarrado em suas cabeças. O problema do envio de cestas básicas parece ter sido temporariamente resolvido, uma vez que, com a recente mobilização da Força Nacional no Mato Grosso do Sul[1], também foram enviadas algumas cestas básicas para a comunidade local.
            Conhecemos uma mulher Guarani-Kaiowá que foi estuprada por oito homens brancos quando saiu da comunidade em outubro deste ano. Ainda assim, ela afirma que não abandonará o movimento de ocupação. Conhecemos também uma mulher idosa que mostrou um ferimento no braço esquerdo, decorrente de um ataque anterior, no qual ainda tinha uma bala alojada. Na saída da comunidade, representantes do MPF/MS tentaram apelar para a boa-fé e negociar com o fazendeiro local da Fazenda Cambará. Pediram que ele permitisse a passagem dos indígenas pela estrada, a fim de evitar que fossem obrigados a se deslocar pelo rio, garantindo, assim, o seu direito de ir e vir. O fazendeiro foi categórico: não permitiria que nenhum indígena passasse por suas terras. O Procurador da República, Marco Antonio Delfino de Almeida, na minha opinião um dos atores mais esclarecidos em todo esse processo, afirmou ao final da viagem: “a situação dos Guarani-Kaiowá é pior do que em um campo de refugiados”.
            Outra aldeia que visitamos foi a de Ypo'i, no município de Paranhos, na qual fomos recebidos com danças e cantos pelos membros locais. Essa comunidade também enfrenta algumas atrocidades peculiares. Em 14 de novembro de 2012 o córrego que fornece água para o acampamento foi envenenado por algum produto químico ainda desconhecido. Um dos indígenas nos mostrou algumas fotos e um vídeo de baixa qualidade que conseguiu fazer por meio de seu celular, o qual evidenciava uma grande quantidade de espuma branca boiando acima da superfície do córrego. Um funcionário da FUNAI presente afirmou que, após receber a denúncia, se deslocou até a comunidade e coletou certa quantidade da água do rio para análise em laboratório. Durante essa coleta, afirmou que pôde sentir o mal-cheiro que exalava do rio. Ainda aguardamos os resultados dos testes da água coletada.
            Não foi a primeira ocorrência de violência contra a comunidade de Ypo'i. Em 31 de outubro de 2009, foi perpetrado um ataque de grupos privados armados no qual homens que portavam armas de fogo espancaram e desferiram tiros aleatórios contra os indígenas que, por sua vez, fugiram para a Terra Indígena de Pirajuí. Posteriormente, sentiram falta de quatro pessoas, dentre as quais dois professores da escola indígena que nunca mais apareceriam. O corpo de Genivaldo Vera foi encontrado no córrego. O corpo de Rolindo Vera, seu primo, nunca foi encontrado.[2] Em nossa visita escutamos o relato do pai de Genivado, que contava como seu filho havia sido sequestrado e morto pelos chamados “pistoleiros”. Também escutamos o relato da mãe de Rolindo que,  assim como Antígona na peça de Sófocles, pedia pelo mais básico dos direitos, situado acima de qualquer lei dos homens: o direito de enterrar o corpo de seu filho.
            No município de Paranhos visitamos também o acampamento de Arroio Corá. Poderia-se dizer que a situação jurídica desse acampamento é sui generis se isso não se repetisse também em outras localidades. A comunidade de Arroio Corá já foi declarada, demarcada e homologada desde 21 de dezembro de 2009, mas a homologação foi suspensa devido à decisão do Ministro Gilmar Mendes, no Supremo Tribunal Federal (STF). Dos 7.175 hectares demarcados pela FUNAI, apenas 700 são ocupados pelos indígenas e, segundo o relatório da demarcação das terras de Arroio Corá, dezessete fazendas ocupavam os 6.475 hectares restantes em 2004. Um indígena me demonstrou incompreensão face à suspensão de um Decreto presidencial de homologação de terra indígena, perante a qual não se pode responder senão com o sentimento de impotência: “a assinatura do presidente não vale nada?”. A existência de um Decreto presidencial de homologação, de nenhuma maneira, significa a pacificação. Recentemente, em agosto de 2012, houve um ataque de grupos privados armados na comunidade no qual desapareceu o indígena Eduardo Pires.[3] Segundo relatos locais, ele teria sido levado pelos “pistoleiros”. Também morreu uma criança indígena de dois anos, chamada Geni Centurião. A comunidade afirma que ela teria passado mal após o ataque e falecido.
            Ao final de todas essas visitas, tivemos a oportunidade de nos encontrar com diversos outros atores relacionados com o conflito. Nos reunimos com membros da OAB/MS, com membros e advogados do CIMI e, até mesmo, com uma família de fazendeiros, que pediu uma reunião com os membros da Advogados Sem Fronteiras a fim de relatar o conflito a partir do seu ponto de vista. Nesse encontro, eles nos relataram algumas irregularidades na atuação das lideranças indígenas e defenderam o direito de compensação financeira para os proprietários de boa-fé que compraram as terras da União sem saber que eram terras indígenas. A advogada de seu grupo argumentou: “Todo o problema da violência está na ocupação das terras por parte dos indígenas, se não houvessem ocupações, não haveria violência”. Mas esse argumento me lembra de uma frase de Bertolt Brecht: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”. Foi a violência a marca do relacionamento do Estado Brasileiro com os Guarani-Kaiowá desde a criação Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910 e as migrações forçadas promovidas contra os indígenas no Mato Grosso do Sul a partir da década de 1930 a fim de incentivar a colonização do Centro-Oeste. A violência marcou a venda ilegal das terras tradicionais dos Guarani-Kaiowá. A violência ainda marca a sua relação com o Estado atualmente, devido à demora na demarcação de suas terras e na suspensão de Decretos de homologação pelo STF. Os Guarani-Kaiowá sempre foram e ainda são invisíveis para o Estado Brasileiro. São eles as verdadeiras vítimas da “impiedosa marcha do progresso”, citada por Victor Hugo.


[1]    Justiça Federal de Navirai-MS, Decisão em sede de Agravo de Instrumento que revoga a liminar de reintegração de posse no processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006,
[2]    Processo nº 0002988-16.2011.4.03.6005.
[3]    Em 13/08/2012, a pedido do MPF/MS, foi instaurado o Inquérito Policial (IPL) 0387/2012, a fim de investigar o ocorrido.


Pedro Andrade, Advogado -Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG
Membro da Advogados Sem Fronteiras -e-mail: pedroandradeint@gmail.com.